MITOS DESVENDADOS: 3 mitos sobre Arte abstrata (e 1 coisa que você vai gostar de saber)
Para entender melhor o texto abaixo, assista ao nosso vídeo sobre Kandinsky, o artista que inaugurou a Arte Abstrata na arte moderna, clicando aqui ou na figura abaixo.
1o mito:
Só faz Arte Abstrata quem não sabe desenhar.
É verdade que muitos artistas, hoje, não sabem desenhar da forma realista como faziam os artistas no passado.
Nas escolas de arte, chamadas Academias de Belas-Artes, até o final do século XIX os alunos passavam por um treinamento intensivo de desenho de observação, tanto do “natural”, isto é, do que se pode observar – naturezas-mortas (frutas, legumes, carne de caça, outros alimentos e garrafas, tachos, panelas, etc. dispostos sobre uma mesa), nu artístico (um modelo sem roupa posava para os alunos, para estudo de anatomia), paisagem (tomada ao ar livre), ornamentos (motivos vegetais, usados principalmente para decoração) e esculturas, além de cópias de gravuras e pinturas dos Grandes Mestres (Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, etc.).
Esse treinamento era básico e todo artista acadêmico (que estudou numa Academia ou que aprendeu os princípios artísticos defendidos por ela) passava por ele e prezava o desenho como uma etapa indispensável na confecção de uma pintura ou escultura.
No início do século XX, os movimentos modernistas, chamados de vanguardas artísticas – cubismo, expressionismo, futurismo, etc. – abandonaram o desenho tradicional pois buscavam fazer uma arte diferente da arte acadêmica. Uma das práticas abandonada após as vanguardas foi o treinamento formal em desenho, pois copiar artistas do passado e observar o “natural” levaria os artistas a fazer uma arte igual ou muito parecida com a arte do passado.
O desenho de “livre expressão”, que prezava muito mais a invenção, a imaginação e a inovação foi o mais utilizado pelos artistas desde essas vanguardas, até hoje.
Não quer dizer que muitos artistas que pintam ou praticam uma arte abstrata não saibam desenhar: o desenho de observação nunca foi “extinto” nem desapareceu. Muitos artistas modernistas o valorizaram e nunca o abandonaram. Henri Matisse, Pablo Picasso, Giorgio Morandi, Salvador Dalí, Piet Mondrian, e muitos outros, sempre faziam desenhos de observação, naturezas-mortas, desenhos a partir de modelos, além de reinterpretações de grandes obras de arte do passado. Não por acaso, todos os artistas citados tinham um grande amor pela arte acadêmica e clássica, só estavam desenvolvendo um outro tipo de arte, a partir de fundamentos diferentes da arte clássica.
O desenho voltou a ser valorizado na arte contemporânea, também por causa da revalorização da gravura como técnica. Muitas escolas e cursos universitários de artes visuais têm o desenho como disciplina que se estende por vários semestres. Retomando mesmo alguns pontos da arte acadêmica – desenho de observação direta, principalmente – embora busque resultados diferentes.
2o mito:
“Borrões” numa tela? Nem sempre.
O artista que borra uma tela de forma aleatória é uma caricatura muito difundida por filmes e programas de televisão, que enfatiza um tipo de pintura irracional, “bagunçada”, uma arte tão subjetiva que ninguém entende – às vezes nem o próprio artista.
A arte abstrata surgiu como algo racional. Wassily Kandinsky e Piet Mondrian, dois dos principais artistas abstracionistas do início do século XX, atribuíam altos valores espirituais a linhas, pontos, cores e planos. Outros queriam ordenar campos de cores, como Josef Albers, e verificar como o olho humano percebia as relações entre eles.
O racionalismo, no Ocidente, está sempre relacionado a formas geométricas puras e regulares. Platão falou-nos dos sólidos geométricos perfeitos – o cone, a esfera, o cubo. Andar por esse caminho tão diferente da arte acadêmica consagrada tinha que ter uma justificativa muito forte. Por isso, a obra dos primeiros artistas abstratos era baseada na racionalidade.
No final da carreira, Kandinsky caminhou para formas abstratas “orgânicas” – formas não geométricas, irregulares, que se assemelham mais a organismos vivos. Outros artistas, como Joan Miró e Paul Klee, embora não fossem inteiramente abstratos, praticaram uma arte que era mais “informal”, que continha muito mais elementos irracionais e orgânicos.
Nos Estados Unidos, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu a obra de Jackson Pollock e seu “expressionismo abstrato” ou “pintura de ação” – a forma, a “figura”, está completamente ausente. As cores estão aplicadas na forma de respingos e borrões. Mas não estão dispostos de forma aleatória. O objetivo de Pollock era formar padrões com os respingos de tinta.
Na Europa, na mesma época, aparece o movimento dos “tachistas” – “tache”, em francês, quer dizer “mancha”. São obras feitas com manchas aplicadas com gestos expressivos. E essas obras também não reivindicam ter sentido pois não “representam” nenhum objeto visível.
Portanto, nem sempre a arte abstrata são “borrões” numa tela – embora às vezes seja.
3o mito:
“Até o meu sobrinho faria”.
Ligar a falta de habilidade artística a crianças, loucos, pessoas de culturas ditas “primitivas” e outras pessoas que se consideram “inferiores” é uma prática que denota, no mínimo, preconceito e falta de informação.
Claro que especialistas sérios de Arte não colocam em pé de igualdade artistas como Leonardo da Vinci e desenhos de uma criança em idade escolar. Mas hoje reconhecemos qualidades em desenhos infantis, em desenhos de pacientes de instituições psiquiátricas. Muito mais ainda em arte de povos chamados até pouco tempo de primitivos, como os aborígenes australianos, os vários povos indígenas das três Américas, africanos e outros.
A outra questão é que a criança sempre desenha com objetivo de formar um sentido bastante claro, ao menos para ela. Se perguntamos a qualquer criança o que significa seu desenho, ela responderá com propriedade e nos contará uma história.
O artista adulto, profissional, que produz arte abstrata, nem sempre “fecha um sentido” para o que produz. Hoje, é desejável e se espera dos artistas que o significado da obra não seja único. É encorajada no espectador a postura de descoberta e construção de sentido a partir da imagem que se apresenta.
… e 1 coisa que você vai gostar de saber.
Você não precisa ficar envergonhado em procurar figuras num quadro abstrato.
Procurar figuras numa composição abstrata é absolutamente normal – pois o nosso cérebro é programado para fazer isso.
No passado da espécie humana, procurar figuras numa paisagem aparentemente desordenada era algo vital – você tinha que estar atento para procurar animais predadores o tempo todo no meio do capim, das folhas das árvores, das pedras, na água, enfim, em todos os lugares.
Da habilidade de formar a figura de uma onça no meio de folhas altas de capim dependia a sobrevivência do “apreciador de arte” da Idade da Pedra.
Essa habilidade está presente até hoje na nossa “programação” cerebral – e 1 milhão de anos de prática como espécie não irão, biologicamente, sumir num piscar de olhos somente porque alguns artistas ficam enraivecidos pela “teimosia” e “ignorância” do público em formar “figurinhas” a partir de suas composições abstratas.
Outra prática, esta cultural, que mostra nossa necessidade de fechar um sentido para tudo, é a narrativa dos caçadores. Em busca de um animal ou rebanho, eles reuniam pistas do solo, das árvores, do capim esmagado, cheiros, etc. Essas pistas não eram “figurativas”, não eram desenhos dos animais, elas eram “abstratas”. Esse rastros – indícios, sinais, pistas às vezes quase imperceptíveis – eram reunidas pelos caçadores, que reconstituíam o caminho do animal que estava sendo caçado. Essas reconstituições do caminho do animal foram as primeiras histórias criadas pelos seres humanos.
Formar sentido, encontrar um significado para tudo, são características muito humanas e não será diferente com obras de arte.
A outra coisa é que a maioria dos especialistas e artistas hoje defende que a arte contemporânea baseia-se no “jogo”, ou seja, o artista propõe ao espectador que este interprete – atribua um sentido – da sua maneira a obra em exposição. A interpretação é sempre aberta e cada espectador irá encontrar um sentido diferente de outro.
Então, por que alguns artistas chamam os espectadores que “não entendem” sua obra de “ignorantes”? Dentro dessa nova mentalidade da arte, não há “certo” nem “errado”, somente “jogo”, “brincadeira”; a obra é sempre “aberta” e não há limites nem regras para o sentido que o espectador queira atribuir à obra de arte – inclusive o de jogar o jogo de “encontrar figurinhas” numa obra abstrata.
muito bom . As informaçoes são claras e objetivas.Gostei muito.