O Museu do Ipiranga e a sua vergonha em mostrar a História do Brasil.

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Pensei: chegou a hora de falar, a partir do ponto de vista de um historiador da arte, que nunca foi nem lulista nem bolsonarista, o que é feito da nossa História e como isso se reflete em um Museu de História do Brasil em nossos dias.

O Museu Paulista, conhecido como Museu do Ipiranga, depois de nove anos de restauro, reforma e readequação, reabriu com certa vergonha da identidade nacional e não responde de forma satisfatória à pergunta: “o que significa ser brasileiro”? Foto: divulgação.

Hoje, dia 07 de setembro de 2023, pelo calendário oficial de feriados nacionais, é dia da Independência do Brasil. Marcam-se oficialmente os 201 anos do “Grito do Ipiranga”.

Tenho visitado bastante o Museu do Ipiranga, já foram mais de dez visitas desde 2022, desde sua reinauguração, por conta das excursões culturais que organizo.

Sou historiador da arte, portanto, são minhas companheiras cotidianas a Arte e a História. As visitas que faço ao Museu do Ipiranga de São Paulo me fizeram refletir, primeiro a partir do que estudei para monitorar os grupos visitantes, aprofundando-se não só na história dos artistas e suas obras que fazem parte do conjunto do Museu do Ipiranga e do Parque da Independência, mas também na História do Brasil e do evento “Independência”.

Depois, as próprias visitas, as reações das pessoas de várias idades ao acervo, o edificio monumental, os jardins, as enormes estátuas e o conjunto gigantesco, não só restaurado mas adaptado ao público do século XXI, foram se juntando a um quadro sobre os significados da nossa História e o sentido que possa fazer para esses visitantes.

Penso que chegou a hora de falar do que tenho visto por lá, do significado maior do museu – ou de sua ausência.

É muito curioso constatar que o Museu do Ipiranga, construído para celebrar um evento antes entendido como decisivo, hoje é visto quase como uma curiosidade, uma relíquia do passado, no que ele teria de atrasado, até mesmo de indesejado. Esta visão não é a minha: ela fica explícita nas escolhas que os curadores do espaço fizeram do que exibir do acervo da instituição. Imagino que escolhas feitas alentadamente ao longo dos 9 anos em que o edifício e o entorno estiveram fechados para restauro e reforma.

Não podemos esquecer que a USP é a responsável pelo Museu Paulista (nome oficial do Museu do Ipiranga). E que a mentalidade visível nas exposições são uma amostra da historiografia produzida nos últimos 100 anos pelos professores e acadêmicos formados pela universidade, que enfatiza a chamada “visão crítica” da História do Brasil. Essa visão tem como objetivo revisar e reescrever outra visão historiográfica, antes dominante, que ensejou a formação do acervo do museu e até o seu nome oficial, “Museu Paulista”.

A visão uspiana, vamos ser honestos, é a visão que triunfou na sociedade brasileira. Em nossas escolas, tanto públicas como particulares, os livros didáticos e os nossos professores de História formam nossos alunos com essa visão descontruída do passado do Brasil.

Antes eram vistos como herois D. Pedro I, José Bonifácio, e outros tantos “patriarcas da Independência” – figuras exaltadas como tendo se sacrificado pela Pátria, sem defeitos, sem falhas, pessoas com ideais elevadíssimos, sem mancha e que tudo neles de defeito, se houvesse, tivesse que ser perdoado. A parte “paulista” do Museu Paulista exaltava os bandeirantes e sua atuação como responsáveis pela ocupação do território brasileiro e seu desenvolvimento econômico, principalmente a visão do povo paulista como empreendedor, tendo esta se originado do “espirito bandeirante”, desbravador, destemido e incansável.

Na visão dos historiadores atuais, foi-se a outro extremo. Esses herois tornaram-se vilões de uma colônia constituída somente para ser explorada, dirigida por europeus mercantilistas europeus escravocratas, interessados somente em manter uma elite que queria “sugar” a terra, tendo lucros fabulosos com o café, no Sul e Sudeste, a cana-de-açúcar, no Nordeste, e que exploraram as riquezas minerais e que roubaram o “nosso” ouro em Minas Gerais. No processo de Independência, teriam trocado o colonialismo português pelo capitalismo mercantilista da Inglaterra. Não foi uma “independência”, segundo essa linha de historiadores, mas uma “troca de dependência”.

Para consolidar a “conspiração de Estado”, impuseram a monarquia, a religião católica e os símbolos nacionais ligados à casa de Bourbon e Bragança, um continuísmo do regime português, mantendo a mesma família governante do trono luso, mas “separada” da ex-metrópole.

O “jeitinho brasileiro” desse processo seria, portanto, a primeira vez que nossa “elite de 500 anos” “colocou as manguinhas de fora” como elite brasileira, malvadona e irresponsável, que trocou a dependência política de Portugal pela dependência econômica do capitalismo inglês. Isso teria levado inclusive à Guerra do Paraguai etc. etc. etc.

Essa é a visão predominante na História ensinada nas nossas escolas hoje, com variações mínimas.

E, embora não esteja de forma escancarada nas exposições do Museu do Ipiranga, é um sintoma da mentalidade brasileira atual perceber a história da Independência do Brasil como coadjuvante no próprio museu que foi criado para contá-la.

A ênfase das mostras está em dois temas: a história da construção do prédio do Museu, cujo local foi demarcado em 1823, mas inaugurado somente em 1895, e que culmina com o restauro do edificio entre 2013 e 2022, e as exposições sobre o cotidiano do povo brasileiro, mais especificamente, do povo paulista.

Assim como há toda uma ala do museu destinada a contar a história da ocupação do terreno atual, do monumento à Independência que está na outra ponta do Parque da Independência, da Casa do Grito e do próprio edifício-monumento.

Irá se decepcionar quem, tendo a lembrança de ter visitado o Museu antes do restauro, queira rever, por exemplo, as carruagens do século XIX. E não, elas não foram jogadas fora, elas ainda fazem parte do acervo.

A maior parte dos objetos e imagens hoje expostos propõe contar a história material do cotidiano brasileiro. E nisso é muito eficiente, bonita e representativa.

Temos desde mostra do dinheiro de várias épocas, assim como objetos do passado colonial, correntes e grilhões do escravagismo, assim como ferramentas agrícolas coloniais, ferramentas profissionais de costureiras, sapateiros, ferreiros e outros ofícios, e objetos domésticos que vão dos pilões de farinha passando por eletrodomésticos de todo o século XX, higiene pessoal, móveis, enfeites de casa e peças de vestuário.

Você pode estar dizendo, “ah, mas é com isso eu me identifico, não com a história dos reis e rainhas, com as tramas políticas coisa e tal”. Não há problema nenhum nisso, claro, as exposições do museu sobre o dia-a-dia no passado são excelentes, realmente dão uma ideia sobre nossos antepassados que, em sua maioria, não eram políticos como José Bonifácio ou nobres como a Princesa Isabel.

O que estou trazendo nessa reflexão é que a nossa identidade brasileira está tão machucada, tão rasgada, que até falar em identidade nacional hoje é visto com maus olhos. Chegamos ao ponto em que o Museu que fala dela a partir de um evento histórico – marco importante na constituição dessa identidade – se envergonha dela de muitas maneiras.

E não se trata somente de parecer que, ao mostrar uma bandeira do Brasil no Museu do Ipiranga possa identificar a instituição com o bolsonarismo, o que seria triste demais. Essa identidade nacional brasileira destroçada não se resume ao sequestro espúrio do principal símbolo nacional brasileiro, a Bandeira, pela direita reacionária do país, associada a um presidente que fez um governo desastroso e que representou o auge do rachamento do Brasil em dois pedaços opostos e antagônicos.

Minimizar a presença dos símbolos nacionais no principal e maior museu de história do Brasil é um sintoma de uma mentalidade vigente. É culminância de um processo do qual os intelectuais de esquerda foram ativos militantes, que trabalharam nas universidades para implantar durante anos na educação de base do país.

Visou, e conseguiu, desconstruir a história do Brasil, revisando o que era ruim para torná-lo pior, invertendo os polos de um heroísmo burro e que servia para os interesses de uma elite irresponsável, para um populismo demagógico que serve aos interesses de outra elite, agora baseada no sindicalismo, no estatismo e nos empresários aliados de governos populistas.

Antes ao menos unificados pela torcida para a Seleção Brasileira de futebol nas Copas do Mundo e pelos pilotos brasileiros na Fórmula 1, nem mesmo esses eventos hoje fornecem algum sentido a palavras como “nacionalismo”, “Pátria” e até mesmo “Brasil”.

À pergunta, “o que significa ser brasileiro?”, parece que a resposta, ao visitarmos o Museu do Ipiranga, é que simplesmente “caímos no sorteio” ao nascer, em um país chamado Brasil, e que devamos nos conformar ao cotidiano do que nos impõe a época, o capitalismo, as relações familiares, políticas e de trabalho.

Ao mesmo tempo em que apresenta de forma fugidia essa identidade nacional, realça o proprio edifício, o jardim e todo o entorno do Museu como uma realização digna de orgulho – embora de formas contraditórias presentes na mesma obra. A obra de restauro é exaltada de duas formas: uma delas, na indefectível contribuição dos governos federal e paulista e seus patrocinadores – enormes empresas e bancos – deixada visível e certamente contrariando a orientação ideológica da universidade. A outra forma é sua exaltação como um espaço de convivência, que proporciona beleza e diversão, além de cultura (esta, quase disfarçada, para não afugentar o público) num ambiente agradável. Não se fale do interior do museu, pois esta é a “parte chata” do Museu, a parte externa é muito mais legal… Poder-se-ia usar a palavra “instagramável”, e o sentido dos objetivos imediatos (políticos) da obra de restauro monumental se fecharia.

A visão das exposições do museu do Ipiranga portanto, não traz nenhum sentido maior, e ainda nos fornece uma visão do Brasil sem esperança, que parte de uma “visão crítica” que visa mostrar um passado colocado como ruim, e que pretende resgatar “o valor do povo” em oposição aos governantes da “elite perversa”. Portanto, nessa visão, é impossível ter orgulho do Brasil, mas é possível valorizar os brasileiros, principalmente “o povo”, identificado sempre como as camadas mais baixas.

Essa visão é coroada pelo presente do Brasil, que “recebeu de presente” um novo Museu do Ipiranga, um lugar belo e agradável para passear, para levar a família, as crianças e os cachorros, que proporciona um cenário bonito para selfies nas redes sociais.

Ou seja, a nossa visão imediatista atual, de que não há esperança a não ser de desenvolvimento econômico pessoal, sem preocupação com as pessoas que nos cercam, sem ligações afetivas, culturais e sociais, e que deixa de lado noções como a “identidade nacional”, coloca à frente a ideia muito aceita atualmente de que “a vida tem que ser aproveitada enquanto se vive”, sem muita preocupação sobre qual país as próximas gerações irão receber.

Falar de um futuro é descabido para essa mentalidade. Um museu de história não deve mesmo ter essa preocupação. Mas a visão do passado deve ser o ponto de partida para a nossa visão de futuro.

Ao visitarmos o Museu do Ipiranga, temos uma amostra da visão da nossa elite intelectual brasileira, uma visão agressiva e perversa do passado, além de demagógica e populista. Infelizmente, os que o visitam, sem os filtros críticos necessários (não os superficiais, bolsonaristas reacionários ou lulistas demagógicos, mas os do bom senso), se não estiverem preocupados somente com a visita ao Jardim Francês, às selfies junto dos monumentos e com os banhos nas fontes abertas ao público, sairão tomados não de um inconformismo contra as elites ou um orgulho do povo brasileiro, mas de um vazio interno, de uma falta de sentido maior. Sentido a ser buscado, quando se fala em museus, no passado, e que deveria justificar a própria existência do museu.

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