Exposição “Microscopias de Alma-Universo Orgânico”, de Claudinei Bettiol-texto do curador
MICROSCOPICAMENTE PEQUENO,
INFINITAMENTE GRANDE
Texto da curadoria da exposição “Microscopias da Alma-Universo Orgânico”, do artista Claudinei Bettiol, realizada no Centro Cultural Martha Watts, em Piracicaba, de 08 a 29 de abril de 2016
Eu e Claudinei Bettiol nos conhecemos há mais de vinte anos. Quando nos conhecemos e firmamos amizade, ambos éramos adolescentes e nossas artes eram as histórias em quadrinhos, o cartum, a charge.
Confesso que não entendi suas pinturas, depois dos anos que a vida nos afastou. Eram “retratos internos” literais: imagens de órgãos, vísceras, em registro aberto, franco e (assim interpretei) agressivo. O Claudinei que eu tinha conhecido adolescente queria chocar, agredia pela franqueza que não se importava com convenções sociais, jogava “verdades” na cara sem se importar com quem as recebia. Eu pensei que o adulto também seguia pelo mesmo caminho, ao jogar na tela de pintura elementos que à primeira vista não eram bonitos, querendo talvez polemizar ao apresentar intestinos, fígados e corações ao invés de engenhos centrais e paisagens acadêmicas idealizadas.
Seria a mesma intenção adolescente, com outro suporte e técnica? O seu discurso de que aquelas formas representavam mais que órgãos, eram a figuração de uma psiquê sendo reorganizada não me convencia. Apesar da explicação, não conseguia enxergar internalização naqueles “retratos internos”. Para mim, discurso e imagem não “batiam”. Pensei que o Claudinei adulto queria apenas chocar, como o Claudinei adolescente tinha feito: uma forma de defesa intensa, agressiva e contundente contra o mundo. Como uma mera afirmação de personalidade, fruto de um egocentrismo que visava as próprias entranhas. Como um tapa na cara do universo, que tinha que “engolir” a “verdade” das vísceras que eram escondidas de todos.
Em resumo, eu não tinha procurado ver o lado do Claudinei como artista e como ser humano. No início (soube disso depois), a sua arte era um meio de manter coesa uma mente que precisava de reorganização. Vários problemas de sua vida estavam sendo discutidos através de signos, de símbolos, naquelas imagens que aparentemente eram um “tapa na cara” das pessoas. Claudinei estava fazendo com que imagens fortes de sua infância e adolescência se tornassem possíveis de ser encaradas. Assim, vermes, seres unicelulares e dejetos perderam a monocromia monótona e foram transmutados em imagens repletas de cor para ganharem uma beleza que não possuem em seu meio original.
Eu subestimei o artista e subestimei a pessoa; fui descobrindo que o conteúdo, como em toda boa obra de arte, não está na superfície. Era necessária uma reaproximação para entender melhor o que o Claudinei estava trabalhando naquelas imagens. Nossas conversas, em nossa reaproximação, fizeram-nos perceber que a vida tinha nos levado por experiências diferentes mas que tinha nos conduzido a conclusões semelhantes. Havíamos mudado, eu e ele. Estávamos, e estamos hoje, de acordo em muita coisa: visão artística, visão profissional, visão quanto ao Eu e quanto ao Próximo.
O meu trabalho como crítico e historiador de arte, curador de exposições e empresário no ramo de arte afinou-se, na minha curiosidade pelo grande mistério do Outro, com o profundo interesse de Claudinei pela vida interior do ser humano e no desvendar e exploração dos mistérios do Inconsciente. Por incrível que fosse, aquelas imagens que remetiam, na aparência, a uma realidade física, tinham a intenção de figurar algo que ia além da aparência. Era simbolismo, e não realismo, a sua intenção artística.
Essa transcendência, esse movimento de ir além do físico, traduz-se na sua busca última, a busca pelo Sagrado – o Último e Mais Grandioso Outro – aquele que não é o Eu, Aquele que está Além de Tudo, no Início e no Fim.
Ainda há ecos do antigo Claudinei na busca do primitivo como o mais “legítimo”, como o mais “autêntico”, longe das convenções sociais mais bem aceitas. O primitivo do xamanismo, da religião não-institucionalizada, do caminho solitário. Sua busca traveste-se de uma busca pelo sagrado através da arte quase como um sacerdócio, mas um sacerdócio de uma religião de um único membro.
O caminho ainda está sendo feito ao caminhar. Chegamos enfim a essa exposição, “Microscopias da Alma – Universo Orgânico”, como um zoom de um momento da busca que ainda não terminou.
Posso declarar que esta exposição foi uma gestação de muitos meses que hoje dá à luz novas imagens. Claro que todo o mérito dessa gestação é do artista; mas gosto de pensar que nossas conversas, entre artista e curador, foram uma motivação para dar à luz imagens que não seriam criadas de outra maneira, que essas conversas foram o fundo de um processo de vida e não só artístico.
Imagens de um ser de luz que passa pelas sombras para ganhar contraste. Essa imagem literária está longe de ser somente uma metáfora, é uma constatação que descreve tanto o processo de reorganização psíquica do artista, quanto a tradução desse processo interno em elementos formais e sua organização nas obras.
Assim, os órgãos internos, veias e artérias, respingos de sangue, e outros elementos que nos fazem lembrar o interior de um corpo humano, estão integrados aqui de uma maneira que começa muito “orgânica”, materialmente falando, nas primeiras obras da mostra.
O ritmo segue, num crescendo, como numa música, desenvolvendo os temas “orgânico → inorgânico → extraorgânico”, “material → espiritual”, “microscópico → macroscópico”.
É de interesse colocar que os artistas que influenciaram Claudinei desde a infância exploraram o mundo microscópico de forma consciente, como o russo Wassily Kandinsky (1866-1944), criador da Arte Abstrata na primeira metade do século XX, e do catalão Joan Miró (1893-1983), artista também abstracionista mas de uma geração após. Ambos exploram o micromundo e criam “novas criaturas”. Um deles, Miró, utiliza o contraste entre branco, preto e cores primárias puras e em manchas sem gradação como forte elemento compositivo, de contraste cromático, para criar seu peculiar microuniverso.
Os primeiros quadros da série podem parecer a exploração gratuita ou oportunista da dor – uma associação apressada demais entre um corpo humano aberto, em exposição através de um corte na carne, e a dor que disso resulta, associada ainda às dores da psiquê, causadas por traumas, distúrbios, disfunções. Interpretação que pode levar a associações com artistas como Francis Bacon e Lucien Freud, que utilizaram a dor e o sofrimento de forma muita explícita em suas obras. É, no entanto, o artista ainda explorando os elementos de sua linguagem – como simbolizar, como “dizer seu conteúdo” não-dissociado da sua forma visual, aparente? É o artista travando sua luta com os instrumentos de sua arte, recusando suas amarras fáceis em influências e procurando dar sentido às suas visões, procurando visualizar seu sentido.
O “crescendo” da série “Microscopias da Alma-Universo Orgânico” atinge seu máximo no tríptico das obras XI – X – XII. O artista leva além da aparência as formas de órgãos internos e consegue, com o contraste forte entre o azul quase negro e a exploração da tridimensionalidade, conquistada através do uso de várias camadas que simulam diferentes planos, com os azuis que nos remetem a distâncias longínquas e vermelhos que nos trazem próximo do quadro, tudo integrado num espaço simbólico, muito mais que uma simulação de um espaço físico. O movimento e a estaticidade, como nas outras obras, estão presentes de forma paradoxal, convivendo juntos, mas em tanta harmonia que não há conflito nem ruído no ápice do tríptico, na obra X. O ponto de partida do expressionismo abstrato, a pintura gestual de Jackson Pollock, uma influência mais presente nas primeiras pinturas da série, é somente uma lembrança. Claudinei alcança o “equilíbrio dinâmico” que Kandinsky perseguia, longe das soluções do artista russo, com originalidade, com personalidade própria.
A partir do tríptico XI – X – XII o artista atinge o justo equilíbrio entre a consciência da dor (passada e presente), a consciência (e necessidade) da matéria como ponto de partida e sustentação da vida interna, e a consciência da necessidade da ausência de luz (talvez como silêncio, um espaço para a meditação) como elemento para o contraste com a luz. É o auge da série, é aqui que o artista consegue com mais felicidade seu intento: forma e conteúdo estão plenamente integrados.
A contemplação, a partir daí, do vídeo “0 (Zero)” e do tríptico VIII – VII – IX, é uma “coda”, como numa sinfonia, a parte final que sintetiza os temas de toda a série e que dão o sentido da conclusão, lembrando o auge mas fazendo avivar-nos a impressão, nossa lembrança, de toda a série.
O Autorretrato XIII, que fecha a exposição, retoma rapidamente a série como um todo, fechando no retrato ao mesmo tempo figurativo, abstracionista e simbólico do artista, um “zoom” no universo orgânico-espiritual de Claudinei Bettiol, uma aproximação com as lentes da arte da nossa busca humana pelo infinitamente pequeno, pelo infinitamente grande, pelos infinitos mistérios de Nós mesmos, do Outro, do Imenso Outro, conhecido e não-conhecido.
Fábio San Juan
Curador da Exposição “Microscopias da Alma-Universo Orgânico”
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