Exposição “Retratos da Cidade”, de Catarina Landim – Texto do Curador
RAZÃO, SENSIBILIDADE E CONHECIMENTO
Texto do curador da exposição “Retratos da Cidade”, de Catarina Landim, realizada no Espaço Cultural do Sindicato dos Bancários de Piracicaba e região, de 05 a 28 de setembro de 2007
Deus está nos detalhes. Aby Warburg
Esta é a primeira exposição individual de Catarina Landim, artista paulistana de 24 anos, e a qual eu tenho a honra de realizar a curadoria.
Seus quadros, executados com a técnica que desenvolveu, o recorte vazado, são muito parecidos com a impressão que temos dela, quando a conhecermos pessoalmente. De longe, parece ser uma pessoa simples, uma menina que não parece saber muita coisa. Mas chegue perto e troque algumas palavras com ela: mostra-se então a complexidade de uma mulher que entende tanto ou mais do que muito artista velho e consagrado na cidade.
Não é à toa que a sua primeira mostra individual vem depois de um curso superior, uma vivência intensa como professora de História da Arte, uma experiência profissional como artista gráfica, com passagens na propaganda, comunicação, além da experiência de viver quatro anos numa cidade do interior de São Paulo que não é exatamente o sonho dos formados em uma faculdade de artes.
A soma destes elementos não bastariam, somente eles, para forjar uma boa obra. Mas Catarina faz muitas ligações inusitadas nos trabalhos aí pendurados.
Ela empresta o verde, não dos canaviais, mas das árvores da cidade para pintar seus papéis. Ela empresta a técnica do recorte do kiri-ê japonês e, mais de longe, do papier decoupé do artista francês Henri Matisse. Ela traz a lição da Gestalt alemã da percepção do contraste figura-fundo de forma limítrofe, interpondo entre os dois o espaço vazio e conquistando o volume somente com elementos bidimensionais. Ela se equilibra com serenidade na corda bamba entre figurativismo e abstracionismo, na terra de guardiães do naturalismo decorado como tabuada e de cultores do egocentrismo expressivo nihilista.
A técnica do recorte
Os desenhos foram tomados pela artista, a lápis, do local retratado ao vivo, em várias dias e horários. Todas as obras então foram executadas com estilete, sobre papel vergé pintado de vários tons de verde, e depois coladas sobre papel vegetal. Após o recorte, foram montadas em molduras de madeira, sem tratamento e sem pintura.
As muitas linhas executadas com corte sutilíssimo exigem que a apreciação se dê em dois tempos. Um é quando avistamos a obra de longe. É a fruição beneficiada com o recuo, que dá a idéia da paisagem. Mas, como nas paisagens mais interessantes, seja que de estilo ou escola forem, o segundo tempo é o de quase grudar o nariz no quadro, para focarmos uma cena isolada do resto, as marcas do estilete sobre o papel ou a elegância do vazado sobre o papel vegetal do fundo.
O efeito de profundidade que Catarina consegue com o recorte vazado é diferente do obtido com o ilusionismo da perspectiva. Quase não há volumes no desenho. Importante mesmo é o volume obtido com o efeito tridimensional obtido pelo espaço que ela deixa entre o papel recortado e o fundo em vegetal. Não há dúvida de que o conhecimento das artes em papel japonesas, como o origami, kirigami e kiri-ê aparece aqui, adaptado ao que quer mostrar e à nossa cultura.
Seu apego ao tridimensional, vindo da sua experiência com a cerâmica, aparece aqui na transmutação do volume para o papel; com efeito, não é apenas da representação com linhas sobre o papel que ela se serve. Ela leva tanto em consideração o papel como a linha nele colocada, a ponto de separar fisicamente a figura do fundo, para manipulá-las em separado. Catarina traduz suas paisagens do real para o idioma do desenho com o sotaque da escultura. Se ela o faz, não é por desejo de ser vanguardista, mas sim porque deseja proceder como todos os grandes artistas: garantir a continuidade da cultura, utilizando-se do passado, adicionando à tradição sua contribuição individual.
A alma serve-se do material e a transcende
Mas as obras aqui expostas não se esgotam no material, elas pretendem transcender o papel, a tinta, a madeira de que são compostas. Como as tripas de animal que nos comovem com a música mais sublime de Bach, o material ordinário encontrado em qualquer papelaria foi utilizado com um propósito aqui. Mesmo que seja possível analisar esses quadros sob o aspecto supostamente puro da visualidade, não há como negar que a mão que recorta o papel é comandada por um olho que envia suas informações para um cérebro que as processa e que causa seus efeitos na alma, no espírito, na mente ou na consciência, como queiram chamar esse lugar intangível do ser humano.
A alma que foi tocada por Piracicaba é a alma que nos devolve em obras artísticas suas impressões, entendimentos, percepções.
Surpreende-nos algumas de suas preferências. Onde estão os cartões-postais que nós, piracicabanos, elegemos como ícones?
Aquelas paisagens que pensamos saber de cor e salteado ela nos mostra de outro ângulo, como o Engenho Central visto do alto da avenida Beira-Rio. Então vemos a própria avenida, o rio, o Engenho lá embaixo na outra margem, as árvores que emolduram a cena envolvendo um personagem que aproveita a sombra. Percebem o quanto isso é diferente dos milhares de quadros que ainda hoje repetem Joaquim Dutra? A representação do nosso rio Piracicaba virou uma Mona Lisa, que ninguém mais vê, somente venera.
Essa visão que se recusa ser refém de representações consagradas e viciantes é uma visão de mundo, e não só uma visão de artista. Só é possível porque traz a consciência e aceitação de que o mundo além-rodovia Luiz de Queiroz também é válido. Que o rio Piracicaba é tão belo quanto o Tejo ou o Tietê. Que os Dutras foram bons mas que existiram Almeidas Juniores, Courbets, Degas, um século XX lá fora. Que a Noiva da Colina é aprazível mas que existem outras noivas e outras colinas.
Ela se recusou a fazer o papel do turista preguiçoso e satisfeito, que compra o cartão-postal, come o peixe no tambor, a pamonha e a garapa na entrada da Ponte Pênsil. Isso também não significa que a artista observa a cidade como uma estranha, com o olhar do antropólogo que estuda o primitivo. Ela dá a cada lugar o seu valor pois o olho que vê é o olho que abraça. Ela tem o Parque do Ibirapuera mas tem também os gramados e árvores da Esalq porque os conquistou para si. O Salto é dela, a avenida Paulista é dela, a Igreja do Bom Jesus é dela e a Praça da Sé também.
Catarina traz algo novo para a cidade, algo que fora dela é velho mas sempre necessário: a união de razão, sensibilidade e conhecimento em um trabalho artístico. Ela afirma com esta exposição, ofertada ao público com o seu imenso coração, que Piracicaba é um bom lugar para se viver, desde que temperado com imaginação, cultura e trabalho.
Fábio San Juan
Curador da Exposição “Retratos da Cidade”